Let´s Go!

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13.7.13

Danos Colaterais - Quando os modelos teóricos enterram a realidade

Quinta-feira à tarde a Meire começou a passar mal. Seu marido não sabia o que fazer, nunca tinha visto a mulher ficar daquela maneira. Apesar das restrições da cadeira de rodas, Meire sempre foi forte, teve de aprender a ser assim num ambiente inóspito e difícil.
A cem metros de onde estavam Meire e seu marido tinha uma unidade da Guarda Metropolitana de São Paulo. O marido e amigos correram para pedir ajuda, mas a GCM disse que não era o papel dela socorrer pessoas, que eles deveriam procurar ajuda especializada. O marido de Meire foi de novo pedir socorro, ninguém da GCM se moveu, mesmo a cem metros de distância e com uma viatura que poderia transportar Meire para o hospital. Não era responsabilidade deles.
O estado de Meire era preocupante, ela só piorava. Seu marido ligou duas vezes para o Samu, mas ninguém apareceu. Só vieram na sexta-feira, quando constataram que Meire estava morta, ao lado do marido, desconsolado.

Meire era moradora de rua. Viveu os últimos dez anos na Praça da Sé, local de manifestações e cultos, o Marco Zero de São Paulo. Ninguém socorreu a Meire, nenhuma das milhares de pessoas que passam na praça. Ninguém. Apesar das ONGs protestarem na mídia, nem elas levaram a Meire para um hospital.

Ontem eu conheci o Renan. Um garoto bonito e simpático, de uns 14 anos, que me ajudou a embalar as compras de supermercado. Mora na frente do supermercado há dois anos, quer trabalhar mas não tem nenhum documento, certidão de nascimento, nada. O Renan não existe nem para o governo nem para a sociedade. O Renan é uma sombra.
Pedi ajuda para um amigo que conhece mais os trâmites de moradores de rua e pessoas em situação de risco, e ele me passou um endereço que o Renan deveria ir, talvez alguém pudesse ajudar. Perguntei se não seria bom que eu fosse junto do Renan, e ele me disse que valia a pena deixar o Renan ir sozinho, para ele treinar o seu protagonismo, ver se ele realmente tinha vontade de sair desta vida. De acordo com meu amigo, eu ir junto do Renan seria uma espécie de paternalismo de minha parte, o Renan precisava exercitar sua cidadania, ou algo do gênero.

Ano passado conheci o Maurício. O que mais me impressionou foi que ele pedia ajuda, e dizia: "Ajudem o Maurício, por favor alguém ajuda o Maurício". Quem estava precisando de ajuda não era "alguém", um morador de rua, ou um dependente químico. Era o Maurício.

Na volta fui falar com ele, me apresentei e comecei a conversar chamando-o pelo nome.
"Você lembrou do meu nome, lembrou do Maurício", foi a primeira coisa que ele me disse.

Qualquer modelo teórico enterra a realidade. Qualquer definição de papel social orientada por um uniforme ou um crachá enterra a humanidade das relações. Ao definirmos papéis sociais muito estratificados e segmentados perdemos boa parte da beleza complexa de nossa existência.

Eu, ingenuamente, quando ouvi o grito das manifestações falando "Vem Pra Rua" tinha imaginado que finalmente as ruas seriam, de alguma maneira, repovoadas por aquele grupo de pessoas que sumiu das ruas. Não imaginei que fossem só desfiles alegóricos e conflitos entre uniformes e crachás, temporariamente circulando pelas ruas. Achei que haveria algum tipo de diálogo, alguém estaria disposto a ouvir as ruas, e não apenas ocupar a rua para poder gritar.

Se depender da sociedade como um todo, qualquer grito que venha da rua não será ouvido. Já estamos acostumados a ouvir o grito da rua, alto, forte, lamurioso. Estamos tão acostumados que já não prestamos mais atenção, fica apenas o ruído ecoando enquanto estamos fazendo outra coisa.

PS - O título deste artigo faz referência ao livro que estou lendo do Zygmunt Bauman "Danos Colaterais - Desigualdades Sociais numa Era Global".

10.7.13

O Melhor Oftalmologista do Mundo

Um dos meus colegas de mestrado é um famoso oftalmologista em sua cidade. Todos querem se consultar com ele. Ele é um especialista no Cortex Visual, que processa as informações que os olhos captam.
Existem inúmeros tipos de cegueira. Você pode não enxergar por problemas na "captação" da imagem, ou seja, problema nos olhos. Mas você pode não enxergar por causa do sistema que "lê"  e organiza as imagens, que fica no Cortex Visual. Existem cegueiras por trauma, e são mais comuns do que imaginamos. Uma pessoa presencia algo tão inesperado e chocante que a mente bloqueia a visão, e ele pode deixar de enxergar durante muito tempo por causa disto.

Meu colega contou que a sua fama veio do fato de ser oftalmologista do exército, ele fazia perícias e laudos, para comprovar se alguém era ou não cego. É muito difícil descobrir se alguém é cego, afinal de contas, como podemos provar?

Uma das coisas que ele faz é checar a atividade cerebral do Cortex Visual. Existem máquinas para isto. Se você gera estímulos visuais e a pessoa está processando os dados recebidos, muito provavelmente ela está enxergando. A não ser que seja cegueira por trauma, que é possível de identificar por consulta com um psicólogo.

Como alguns acidentes acontecem no exército, e os soldados "alegam" cegueira depois de, por exemplo, terem os olhos inundados por óleo de motor, o soldado é mandado para uma consulta no oftalmologista. E geralmente o soldado vai, tristonho, acompanhado de familiares, ao consultório do meu colega.

Quando meu colega detectava que o soldado, na verdade, estava tentando uma aposentadoria precoce ou se livrar do alistamento militar, ele pedia para os familiares saírem e abria o jogo:

- Meu amigo, parece que você está enxergando, e diz para os outros que não enxerga. Eu vou escrever um laudo falando sobre isto, e provavelmente vai te trazer problemas... O que podemos fazer nesta situação?

O sujeito pensava, pensava, e a única solução era tomada...

O cara começava a gritar, eufórico. A família, assustada, entrava correndo no consultório. Dentro, o soldado, chorando, agradecia o meu colega.

- O senhor é milagroso! Voltei a enxergar! Estou enxergando tudo!!

A família abraçava, chorava, mandava bolo depois, aquela festa.

É uma maneira curiosa de fazer reputação, mas meu colega pelo menos se diverte com isto...

7.7.13

Resmungando no Face - O Universo das Indiretas nas Redes Sociais

Depois de resolver mil problemas no trabalho, me sento para navegar um pouco nas redes sociais, e o que vejo? Um mundo de indiretas. Como têm gente que solta indiretas nas timelines. Como têm casal brigando publicamente, como têm gente reclamando dos colegas de trabalho...
Mas tudo de uma maneira semi-escondida, sem declarar explicitamente, sem resolver a questão falando, ligando, mandando mensagem inbox. Não. O que as pessoas querem é resmungar.

Do ponto de vista da efetividade, o resmungo não gera nada de positivo, no sentido de melhorar a situação daquele quem resmunga. O máximo que pode gerar é raiva ou constrangimento daquele a quem o resmungo se destina. Isto se ele descobrir.

O resmungo pode ser perigoso, pois algumas pessoas podem achar que você está falando delas. Se está reclamando do trabalho, você com certeza têm mais colegas do que só aquele para quem está jogando as indiretas. E eles podem achar que a indireta é para eles, o que realmente pode ser ruim. O mesmo vale para amigos.

Curiosamente alguns amigos mais próximos poderão se solidarizar, pois eles sabem de informações que os outros não sabem, aumentando o ruído e o perigo.

No fundo, o que o resmungo mostra é uma tentativa de vitimização, de mostrar para os outros como você é um pobre coitado e que merece lambidas de acolhimento por parte dos outros componentes do bando. Como todas as perdas são subjetivas (o que faz com que eu perder o emprego não signifique que meu sofrimento possa ser maior que o seu, que acabou de perder seu peixinho de estimação, já que cada um sente diferente as perdas), não podemos julgar improcedente um sentimento de alguém que esqueceu a bolsa em casa e está sinalizando sua tristeza no Facebook.

Mas como toda sinalização, se ela der certo, muitas pessoas se acostumam com ela. Um bebê de meses de idade sabe disto. Se eu gritar e me atenderem, vou continuar usando o recurso para obter atenção. E isto tem transformado as redes sociais num universo de resmungo infantil impressionantemente grande.

Aliando a isto o fato do prazer gerado no universo virtual ser menor que o real, o resmungo gera um acolhimento baixo, ou seja, não há abraço, conforto real por aquele que dá apoio aos reclamões, o que faz com que fique uma sensação de ausência de saciedade no processo. Sem saciar a vontade de obter atenção através do resmungo, o resmungão vai continuar a reclamar. Infelizmente parece ser um ciclo sem dia nem hora para terminar. Vamos ter de continuar a nos relacionar virtualmente, só que desviando dos resmungos virtuais, cada vez maiores, mais pseudo-trágicos, mais lamuriosos, e menos eficazes em nossas timelines.