Originalmente a palavra Daemon surgiu para definir a voz interior que temos, ou as vozes (no plural) que agem dentro de nossa cabeça. Enfatizo a questão plural, pois existem muitos dentro de nós. Alguns pesquisadores da área da Neurociência não conseguem definir dentro de um indivíduo apenas uma consciência, parece que há várias, da mesma maneira que também não é possível definir um indivíduo como uno, são vários dentro de uma pessoa. É confuso, mas é o que sabemos hoje. Talvez no futuro seja mais claro como isto acontece.
Estes indivíduos e estas consciências não são desdobramentos de nosso ego, como se existissem vários egos, são mais coisas, de acordo com os seguidores de Jung, discípulo de Freud. Há como uma fauna dentro de nós, e nem tudo é regido pelos nossos egos, há outras manifestações, que compõem este "ecossistema", que ainda podem e devem ser investigados.
Mas esta investigação esbarra num fator cultural importante, vivemos numa cultura monoteísta, que define uma "unicidade" das vozes que temos. Melhor dizendo, não devem haver "vozes", mas sim uma única voz dentro de nós, convergente a um único sentimento em relação a um único Deus.
Isto acaba afetando nosso modo de pensar, mesmo quando não somos necessariamente religiosos. Não há como negar que este ambiente "mono" acaba ajudando a construir um pensamento ou uma proposição de pensamento único, fortalecendo a imagem de que somos apenas um, e estamos conectados a outro "um" também. E assim acabamos evitando a dubiedade, a complexidade. Temos de ter um único pensamento, uma única opinião, não sabemos trabalhar com os conflitos interiores que temos e que deveriam ser parte de nós, não algo a ser extirpado.
A dubiedade não é uma situação instável a ser resolvida. Ela é parte de nós. E, sem ela, perdemos muito de nossa "fauna" interior de vozes, que discordam, que surpreendem e que nos fazem sermos o que somos. E se Deus não é um, e sim vários, porque nós não poderíamos ser vários também?