Se nos Estados Unidos a "guerra ao terror" justifica abusos contra os direitos humanos básicos, no Brasil, a "guerra ao tráfico" é a desculpa da vez.
Pelo que se sabe de Amarildo, não parece que ele fosse um santo (Só para lembrar, nem você nem eu somos santos). E que ele tinha algum vínculo com o tráfico na comunidade onde morava, ou fazia parte dele. Ainda não está claro o envolvimento.
Como o país estava mobilizado pelas manifestações, o grau de tolerância de vários segmentos da sociedade estava muito baixo em relação a abusos, e o desaparecimento de Amarildo caiu na boca do povo, o fato acabou se tornando um ícone da conduta violenta da polícia.
A frase "Onde está Amarildo", vista em centenas de situações, poderia muito bem ter acontecido na época da ditadura, quando pessoas desapareciam sem deixar rastros. Até hoje, depois de quarenta anos, algumas não foram encontradas.
Mas a grande questão é sobre a tortura e morte realizada por órgãos oficiais. Esta é a questão. É o Estado sendo conivente com agentes da sociedade, que são pagos para agirem em benefício de todos, realizando torturas e mortes em paralelo com outras leis, que ao que parecem, são de menor relevância social, como ter direito a se defender e ser julgado por um tribunal. A própria pena de morte não existe no papel no Brasil, mas existe na prática.
Para que tenhamos um paralelo entre a conduta do Estado e da Sociedade, imagine uma situação onde você têm uma empresa, e um dos gerentes descobre que um grupo de funcionários estava desviando dinheiro. O gerente chama outros gerentes e eles combinam uma reunião com os funcionários no final do dia, isolam o grupo do contato com outras pessoas e passam a noite torturando o grupo até descobrirem o que estava acontecendo.
No meio da tortura, um dos funcionários não aguenta os maus tratos e morre. O grupo de gerentes passa então a criar uma série de evidências para tentar provar que ele não morreu sendo torturado por eles, mas sim que os outros funcionários o mataram, para que ele não denunciasse o esquema.
Dentro do contexto corporativo a história se torna dura, pesada, parece um filme de suspense, cheio de chantagens e terror psicológico. Mas dentro do contexto social do Brasil se torna mais um caso de "abuso de autoridades", mais uma estatística, parece não ter importância. Afinal de contas, "se Amarildo se meteu com traficantes sabia o que podia acontecer com ele".
Mas como não se meter com traficantes se eles são (ou eram) os líderes da comunidade onde você vive, a mesma comunidade que foi isolada e abandonada durante décadas pelo governo? Que botava todos os excluídos no mesmo pacote, e ignorava o que acontecia por lá, ou era cúmplice de algumas situações? Quem não está envolvido, direta ou indiretamente, com o poder estabelecido?
Há inúmeras evidências de que a violência é um processo contagioso: quanto mais violentos somos, mais violentos nos tornamos. "Transmitimos" violência, fazendo com que os outros se tornem violentos também. A tortura é uma forma de violência inaceitável, mas achamos razoável em estados de exceção, como nos morros ou na guerra ao terror.
Evidentemente Amarildo está morto, e o Estado não vai deixar de torturar pessoas. Vai procurar dois ou três bodes expiatórios e entregar para satisfazer a vontade de justiça. Mas a tortura não vai acabar. Infelizmente, pois hoje no governo temos um monte de pessoas que sofreram com a violência no passado, mas não se solidarizam com aqueles que são torturados hoje...
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