Quinta-feira à tarde a Meire começou a passar mal. Seu marido não sabia o que fazer, nunca tinha visto a mulher ficar daquela maneira. Apesar das restrições da cadeira de rodas, Meire sempre foi forte, teve de aprender a ser assim num ambiente inóspito e difícil.
A cem metros de onde estavam Meire e seu marido tinha uma unidade da Guarda Metropolitana de São Paulo. O marido e amigos correram para pedir ajuda, mas a GCM disse que não era o papel dela socorrer pessoas, que eles deveriam procurar ajuda especializada. O marido de Meire foi de novo pedir socorro, ninguém da GCM se moveu, mesmo a cem metros de distância e com uma viatura que poderia transportar Meire para o hospital. Não era responsabilidade deles.
O estado de Meire era preocupante, ela só piorava. Seu marido ligou duas vezes para o Samu, mas ninguém apareceu. Só vieram na sexta-feira, quando constataram que Meire estava morta, ao lado do marido, desconsolado.
Meire era moradora de rua. Viveu os últimos dez anos na Praça da Sé, local de manifestações e cultos, o Marco Zero de São Paulo. Ninguém socorreu a Meire, nenhuma das milhares de pessoas que passam na praça. Ninguém. Apesar das ONGs protestarem na mídia, nem elas levaram a Meire para um hospital.
Ontem eu conheci o Renan. Um garoto bonito e simpático, de uns 14 anos, que me ajudou a embalar as compras de supermercado. Mora na frente do supermercado há dois anos, quer trabalhar mas não tem nenhum documento, certidão de nascimento, nada. O Renan não existe nem para o governo nem para a sociedade. O Renan é uma sombra.
Pedi ajuda para um amigo que conhece mais os trâmites de moradores de rua e pessoas em situação de risco, e ele me passou um endereço que o Renan deveria ir, talvez alguém pudesse ajudar. Perguntei se não seria bom que eu fosse junto do Renan, e ele me disse que valia a pena deixar o Renan ir sozinho, para ele treinar o seu protagonismo, ver se ele realmente tinha vontade de sair desta vida. De acordo com meu amigo, eu ir junto do Renan seria uma espécie de paternalismo de minha parte, o Renan precisava exercitar sua cidadania, ou algo do gênero.
Ano passado conheci o Maurício. O que mais me impressionou foi que ele pedia ajuda, e dizia: "Ajudem o Maurício, por favor alguém ajuda o Maurício". Quem estava precisando de ajuda não era "alguém", um morador de rua, ou um dependente químico. Era o Maurício.
Na volta fui falar com ele, me apresentei e comecei a conversar chamando-o pelo nome.
"Você lembrou do meu nome, lembrou do Maurício", foi a primeira coisa que ele me disse.
Qualquer modelo teórico enterra a realidade. Qualquer definição de papel social orientada por um uniforme ou um crachá enterra a humanidade das relações. Ao definirmos papéis sociais muito estratificados e segmentados perdemos boa parte da beleza complexa de nossa existência.
Eu, ingenuamente, quando ouvi o grito das manifestações falando "Vem Pra Rua" tinha imaginado que finalmente as ruas seriam, de alguma maneira, repovoadas por aquele grupo de pessoas que sumiu das ruas. Não imaginei que fossem só desfiles alegóricos e conflitos entre uniformes e crachás, temporariamente circulando pelas ruas. Achei que haveria algum tipo de diálogo, alguém estaria disposto a ouvir as ruas, e não apenas ocupar a rua para poder gritar.
Se depender da sociedade como um todo, qualquer grito que venha da rua não será ouvido. Já estamos acostumados a ouvir o grito da rua, alto, forte, lamurioso. Estamos tão acostumados que já não prestamos mais atenção, fica apenas o ruído ecoando enquanto estamos fazendo outra coisa.
PS - O título deste artigo faz referência ao livro que estou lendo do Zygmunt Bauman "Danos Colaterais - Desigualdades Sociais numa Era Global".
2 comentários:
Triste Realidade......
Sim, nossa existencia não é apenas intelectual. Desaprendemos a olhar para o lado e ver o humano irmão, falar com ele, lembrá-lo que ele merece existir, ser feliz. Mudar a realidade é mudar por dentro.
Enviar um comentário